De Sponville a Fonseca
Em "O Capitalismo Será Moral?" (Editorial Inquérito), André Comte-Sponville diferenciou três ordens de pensamento: a ordem do possível, a ordem da legalidade e a ordem da moral. Usando esta grelha do filósofo francês, percebemos melhor o encanto seco de Rubem Fonseca. No livro de contos "Ela e Outras Mulheres" (Campo das Letras), este escritor brasileiro descreve os homens e as mulheres apenas no campo da possibilidade. Um homem pode ser torturado por dois homens? Sim, é possível. Então, Rubem Fonseca descreve este acto (e outros muito piores...) com uma frieza glaciar. Fonseca descreve actos horrendos, mas nunca adjectiva esses actos, ou seja, nunca entra na ordem moral e na ordem legal.
Os códigos legais e morais - os factores que distinguem o universo humano do universo animal - são aqui abolidos. É esta amoralidade não-humana que transforma Rubem Fonseca num autor fascinante. E reparem numa coisa: Fonseca está no campo da amoralidade e não da imoralidade. Fonseca assume-se como uma câmara que vai filmando o horror como se não soubesse o que é o horror. Fonseca é um extraterrestre que descreve actos humanos sem o conhecimento dos códigos que permitem julgar esses mesmos actos.
A escrita de Fonseca é um notável mundo sem adjectivos.