(Ainda) sou "turco", ou a pátria tardia de Robespierre
No Expresso deste sábado, publiquei este pequeno ensaio sobre a Turquia e a UE:
Em Novembro de 2008, tive oportunidade de passar uns dias entre a elite de Istambul (jornalistas, produtores de TV, etc.) [a convite destes senhores] De forma imprevista, esta viagem abalou a minha fé “turca”. Sempre defendi a entrada da Turquia na UE. Porém, ali, no terreno, percebi que a Turquia ainda não está pronta para ser “europeia”. Mas, atenção, o meu “sim” à Turquia manteve-se de pé. E por duas razões. Em primeiro lugar, a Turquia ainda pode evoluir no sentido certo. Em segundo lugar, o lado negativo da Turquia - ao contrário do que seria de esperar - não advém da religião, mas sim dos sectores jacobinos que controlam o Estado. Estes “kemalistas” conseguem ser mais jacobinos do que os franceses.
Por norma, o “não” à Turquia baseia-se num critério religioso. Segundo os defensores do “não”, a Turquia não pode entrar na UE por causa da sua natureza muçulmana. Este raciocínio fecha por completo as portas à Turquia, e transforma a UE num clube cristão. O meu argumento é diferente: a Turquia ainda não pode entrar na UE, porque o seu Estado tem traços ditatoriais. O problema não é religioso mas político, e, portanto, a Turquia ainda poderá congregar as condições necessárias para aderir à UE. Na Turquia, o problema não é o véu islâmico; o problema é, isso sim, a colecção de magistrados e militares autoritários. A democracia turca está à mercê desta elite jacobina que gosta de fazer golpes militares e judiciais em nome do secularismo. Ora, se conseguirem resolver estes problemas institucionais, os turcos devem ter a sua oportunidade europeia. Por isso, o meu “sim” permanece de pé. E este “sim” tem duas faces: interesses estratégicos e valores políticos.
Ao nível dos interesses, devemos considerar três pontos. (1) A Turquia é essencial para a segurança energética europeia, dado que é a única forma de sairmos do cerco energético russo. (2) A Turquia é uma potência à moda antiga: tem influência na Ásia Central e detém um exército realmente capaz de matar em combate, coisa que dava muito jeito à PESD. (3) Do ponto de vista português, a Turquia - dentro das estruturas da UE – seria uma aliada contra os “grandes” do costume. Se a Turquia tivesse a dimensão de Malta, já teria entrado na UE, e a França estaria agora a cantar a tolerância religiosa da Europa. Mas, por acasos do destino, os franceses são laicos de manhã (para criticarem os EUA) e católicos à tarde (para afastarem os turcos).
Na escala dos valores, só existe uma pergunta em cima da mesa: queremos uma Europa regida por critérios políticos (democracia liberal), ou por critérios identitários (cristianismo)? Eu acredito numa Europa política. Cristãos e muçulmanos podem partilhar os mesmos princípios políticos assentes no constitucionalismo liberal. O que interessa não é a cultura, mas as instituições. O que conta não é a religião, mas a constituição. A Turquia não é um “Estado Muçulmano”. O Estado turco é laico; demasiado laico, aliás. A população turca é que é muçulmana. A separação entre a variável “Estado” e a variável “Sociedade” é aqui fundamental. Por todas estas razões, continuo a apoiar a Turquia. Se a Turquia cumprir os critérios políticos, então, tem tanto direito a estar na UE como Portugal. Mas é aqui que começam os problemas.
Como já afirmei, as instituições turcas ainda não estão afinadas. Os militares, por exemplo, vêem-se como os guardiões da revolução jacobina de Kemal Ataturk (1923). E, na defesa deste secularismo fanático, os ditos militares projectam demasiado poder no sistema político. Aliás, a Turquia faz lembrar Portugal entre 1974 e 1982: existe uma espécie de Conselho da Revolução turco, que mantém o país em “estado de emergência” revolucionário. A magistratura é outro problema. E nem sequer estou a falar do golpe constitucional lançado sobre o AKP. Estou a falar, sobretudo, da reduzida liberdade de expressão. Se um intelectual turco criticar a chamada “Turquicidade” (ligada ao legado jacobino de Ataturk, e não ao Islão), então, esse intelectual será condenado nos tribunais.
Na “questão turca”, o problema não é Alá. O problema é outro: a Turquia é a pátria tardia de Robespierre.