Francisco Sá Carneiro
Como é que um solitário pode estar em sintonia com uma sociedade? Foi o que aconteceu com Francisco Sá Carneiro na década de 1970. Dos quatro líderes partidários da nova democracia, era o que tinha o feitio mais difícil. Não dispunha do traquejo político de Álvaro Cunhal ou de Mário Soares, mais velhos e politicamente activos desde havia décadas, nem do conhecimento do Estado de Diogo Freitas do Amaral, professor de direito administrativo. Mas ao contrário deles, este jovem advogado (tinha 39 anos aquando do 25 de Abril) era um homem em mudança. O que, num país em mudança, fez dele um “homem representativo”. Nem por isso teve um percurso fácil.
A descoberta da política.
Sob a ditadura salazarista, a política estava tão condicionada, que só pequenas minorias de um lado e outro a faziam. Mesmo os instalados no regime preferiam, na sua maioria, passar por simples funcionários. Em 1968, ao suceder a Salazar, Marcello Caetano pareceu querer alterar tudo isso. Propôs-se “conversar”. Admitiu “evoluir”. Foi o que finalmente trouxe para a política um advogado do Porto, Francisco Sá Carneiro. Tinha 35 anos. O pai fora deputado. Mas ele nunca tivera qualquer “participação política”. O que o atraiu, em 1969, quando convidado para integrar, como independente, a lista de candidatos do governo à Assembleia Nacional, foi a perspectiva de uma mudança.
A industrialização, a emigração e o turismo estavam a transformar o país. Mas a ditadura e a política colonial continuavam a separar Portugal da Europa ocidental. Sá Carneiro acreditou na possibilidade de Marcello Caetano fazer evoluir a ditadura para “um regime de tipo europeu ocidental”. Mas se isso o afastava dos velhos salazaristas, também o distinguia das oposições de esquerda, então rendidas ao marxismo, que convencera muitos esquerdistas que a alternativa à ditadura salazarista era outra ditadura, de tipo soviético ou maoísta. Por essa razão, Sá Carneiro esteve disposto a dar uma oportunidade a Caetano.
Sá Carneiro acabou por sentir o “marcelismo” como um logro. Não era um tecnocrata, como aqueles que esperavam aproveitar o sistema autoritário para, à maneira iluminista, fazerem reformas a partir de cima. Uma vez na Assembleia Nacional, incluído num círculo de deputados ditos “liberais”, tentou forçar o desmantelamento da repressão. Esse não era o plano de Caetano. O chefe de governo pretendera integrar no regime gente como Sá Carneiro, mas sem pôr em causa o controle governamental da vida pública. Quando, em 1973, as conspirações militares e a crise do petróleo destruíram a autoridade de Caetano, já Sá Carneiro rompera com a ditadura. Renunciara ao lugar de deputado e dava muito trabalho à censura com os seus artigos no semanário Expresso.
Derrotas.
Em 1974, Sá Carneiro era provavelmente mais conhecido que os líderes da oposição de esquerda. Pouco depois do golpe militar de 25 de Abril, deu uma entrevista à televisão, anunciando a fundação de um partido político. Respeitando o ambiente, dizia-se de “centro-esquerda”, reclamando, para zanga de Mário Soares, a bandeira da “social democracia”. À partida, tinha um jogo forte. Não podia ser acusado de “fascista”; mas ao mesmo tempo, não era um revolucionário. Acima de tudo, tornou-se adjunto do primeiro-ministro Palma Carlos. Viveu até, por cortesia deste, na residência de S. Bento. A criação do CDS, incentivada pela esquerda militar, foi já uma tentativa de limitar à direita a vocação maioritária do seu promissor Partido Popular Democrático.
Nada correu como devia ter corrido, porque a “transição democrática”, por via da descolonização, acabou por transformar-se na última revolução marxista da Europa. Ao envolver-se na tentativa falhada de reforçar os poderes do presidente Spínola, Sá Carneiro ficou às avessas com a esquerda militar que ia dominar o país a partir do Verão de 1974. Passou, por essa razão, a ser contestado no seu próprio partido. Uma doença grave, no fim de 1974, pô-lo fora do país até ao Outono de 1975. Sem ele, o PPD chegou a segundo partido nas eleições para a Assembleia Constituinte, em Abril de 1975, mas manteve-se estrategicamente dependente do PS na resistência contra o poder comunista.
Quando regressou a Portugal e à política em Setembro de 1975, Sá Carneiro já não veio combater o “gonçalvismo”, mas o compromisso com que as esquerdas esperavam encerrar o PREC ressalvando as nacionalizações, a “reforma agrária”, a tutela militar revolucionária e, através de tudo isso, o monopólio da direcção do Estado. O PPD tinha uma elite dirigente muito mais à esquerda do que os militantes, quase todos no norte e nas ilhas. Esses militantes, profundamente anti-comunistas, deram a Sá Carneiro força para exigir a reversão completa do PREC. Mas era uma força demasiado regional e os EUA e a igreja católica já se haviam comprometido com o PS e o “Grupo dos Nove” do Conselho da Revolução. Sá Carneiro fez então figura de alguém que, não tendo sido convidado, decide estragar a festa.
Na própria direcção do PPD, houve muitos que não acompanharam Sá Carneiro. Quando tentou forçar a nota “contra-revolucionária”, viu sair do partido 21 dos seus 81 deputados (Dezembro de 1975). Teve de se conter. Embora contrário à constituição de Abril de 1976, deixou o PPD votá-la. Viu-se assim numa situação ingrata: à esquerda, parecia demasiado contra-revolucionário; à direita, não o suficiente. Nas eleições de 25 de Abril de 1976, o PPD perdeu votos e deputados em relação a 1975 e viu o CDS expandir-se à sua direita. Em 1976, Sá Carneiro chefiava o segundo maior partido, mas era também um líder a quem quase só tinham sido averbadas derrotas desde 1974.
O agitador.
Entre 1976 e 1980, Sá Carneiro foi o mais agressivo de todos os políticos portugueses. Soares cultivava a bonomia, Freitas era genuinamente cordial, e Cunhal, sendo dogmático e frio, dissimulava-o com um sorriso condescendente. Não assim Sá Carneiro, reservado e cortante. Não era só feitio. A verdade é que nunca esteve numa posição fácil. Em 1976, tentou ingressar num possível governo assente na maioria presidencial. Mas o presidente Eanes deixou Mário Soares formar um governo minoritário, alimentando as suas ambições de tornar o PS num “partido-charneira” entre o CDS e o PCP.
O PPD, então já PSD, parecia destinado a ser partilhado entre o PS e o CDS. Sá Carneiro estava a mais. Teve de defender-se. O fim da prosperidade, as dificuldades financeiras, o conflito entre Eanes e Soares e a frustração geral com o regime deram-lhe audiência para a contestação daquilo a que chamou uma “semi-democracia”. Mas procedeu sempre tendo em vista o acesso ao poder, o que o obrigou a explorar muitas possibilidades, às vezes contraditórias. Ora propôs convergências, ora procurou confrontos, em sucessão rápida. A sua liderança foi, por isso, pouco colegial e pouco previsível. Uma parte da direcção do PSD ressentiu-se disso e convenceu-se que era ele, com a sua estratégia “errática” e o seu estilo “conflituoso”, quem condenava o partido ao ostracismo. Sá Carneiro não evitou o confronto. No fim de 1977, abandonou mesmo a presidência do partido, sabendo que voltaria com mais força, como aconteceu em 1978. Motivou assim, no ano seguinte, mais uma cisão do PSD, que desta vez lhe custou 37 dos 73 deputados.
As razões pelas quais a classe política não estimava Sá Carneiro – o seu desassossego, irreverência e frontalidade – eram as mesmas que faziam dele, a crer numa sondagem de opinião de 1979, o político mais popular depois de Eanes. Era um “agitador”. Nestes anos, a sua agitação não era só política, mas também pessoal. Separara-se da mulher, que ficou no Porto, para passar a viver em Lisboa com a editora Snu Abecassis. Afastou-se então do seu meio de origem e da prática católica. Os seus inimigos depressa fizeram desse problema familiar uma questão política. Isso terá reforçado a sua sensação de proscrito. Mas pô-lo em sintonia com uma sociedade que já também explorava o individualismo como via para a “felicidade” pessoal.
O Portugal da “semi-democracia” era um país com um sistema eleitoral justo e limpo, mas limitado pela tutela militar revolucionária, exercida pelo Conselho da Revolução e destinada a fixar, contra mudanças de opinião ou novas maiorias, o “rumo ao socialismo”. Para Sá Carneiro, esse país nunca poderia ser uma verdadeira democracia. Ao contrário das esquerdas, acreditava que a democracia em Portugal podia e devia ser um regime de tipo ocidental, integrado na Comunidade Económica Europeia. Defendia, por isso, o fim da tutela militar e a extinção dos limites à iniciativa privada. Desse programa, Mário Soares concordava com a primeira parte, mas não com a segunda. Eanes, no fundo um conservador, talvez com a segunda, mas não com a primeira. Cunhal, com nenhuma. Acima de tudo, poucos políticos aceitavam o modo como Sá Carneiro finalmente se propôs chegar à europeização do país, através da chamada “bipolarização”, isto é, do confronto entre dois blocos, um “reformista” e outro “imobilista”. Eanes e Soares preferiam mudanças graduais, através de consensos. Ao exigir “democracia já!”, Sá Carneiro ficou, perante a “semi-democracia”, na situação em que estivera perante o marcelismo. Mas tinha do seu lado a impaciência que a mudança social implantara na sociedade portuguesa.
O anti-PREC.
O Ocidente, na década de 1970, ainda vivia com as nacionalizações do pós-guerra, planeamento económico e controle político de juros, câmbios e preços. Perante a União Soviética, seguia uma política de apaziguamento. Mas em 1979, o segundo choque do petróleo e a percepção do “expansionismo soviético” abalaram tudo isso. Os intelectuais franceses começaram a renunciar ao marxismo. A Inglaterra e os Estados Unidos elegeram conservadores como Margaret Thatcher (1979) e Ronald Reagan (1980).
A frente eleitoral “reformadora” que Sá Carneiro combinou com Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa, do CDS, no Verão de 1979 foi parte dessa viragem. Sá Carneiro esperava que pudesse corresponder a uma “onda de fundo” e que não tivesse resposta do outro lado, já que o PS nunca se aliaria ao PCP. Amaro da Costa definiu o projecto como um “anti-PREC”: tratava-se de rejeitar a herança de 1975 e, por essa via, a ascendência das esquerdas. E embora, ao contrário do PREC, o “anti-PREC” seguisse uma via eleitoral e legalista, dependeu ainda de manifestações gigantescas e de uma juventude agressiva, de t-shirts e auto-colantes, que tirou às esquerdas o domínio das ruas (“Assim se vê a força da AD!”).
Em Dezembro de 1979, a AD venceu as eleições legislativas intercalares, com maioria absoluta, e as autárquicas. Era a primeira vez na história de Portugal que uma força da oposição ascendia ao governo por via eleitoral. Era também a primeira vez que os partidos à direita do PS ocupavam o poder sozinhos. Sá Carneiro tomou posse como primeiro-ministro em Janeiro de 1980. Muitos esforçaram-se por o achar mais tranquilo. Estava, porém, combativo como sempre. O Conselho da Revolução não o deixou dar mais espaço ao sector privado da economia. Mas ele aproveitou o equilíbrio financeiro, conseguido em 1978-1979, para interromper a política de desvalorização e permitir a primeira subida do poder de compra desde 1975. Garantiu assim, embora à custa das contas públicas, o bom ambiente para alargar a maioria absoluta nas legislativas de Outubro de 1980. A política estava primeiro.
O ano de governo de Sá Carneiro, em 1980, foi o mais tenso da política portuguesa desde o PREC. O primeiro-ministro tornou-se alvo de uma campanha de descrédito pessoal sem precedentes, explorando a sua vida privada. Sá Carneiro também ajudou à crispação. Para dar consistência à maioria da AD, insistiu no anti-comunismo e no confronto com Eanes, contra o qual fez avançar um candidato às eleições presidenciais de Dezembro desse ano. Era uma necessidade, porque Eanes representava os compromissos de 1975, que bloqueavam qualquer evolução rápida. Mas era também um risco, porque Eanes era popular e a conjunção das esquerdas, impossível nas legislativas, era viável nas presidenciais.
A ideia era instalar na presidência da república um general que desse a garantia de que os militares, sobretudo os que estavam entrincheirados no Conselho da Revolução, não invocariam qualquer legitimidade revolucionária para interromper um processo de revisão constitucional que Sá Carneiro esperava desbloquear através da instituição do referendo. As sondagens, porém, sugeriram sempre a derrota do candidato da AD, o general Soares Carneiro. Sá Carneiro queixou-se ocasionalmente de um eleitorado que não percebia a lógica do slogan “uma maioria, um governo, um presidente”. Mas para muita gente na direcção da AD, o problema não era o eleitorado, mas um primeiro-ministro que, em vez de gozar o poder, o arriscava novamente, como um jogador compulsivo. Muito provavelmente, Sá Carneiro estava em vésperas de mais uma ruptura. Perante a vitória de Eanes, preparava-se para sair do governo e, segundo deu a entender a Freitas do Amaral, talvez até do PSD, para prosseguir a sua contestação à “semi-democracia”.
Depois dele, através de acordos e compromissos, o regime foi gradualmente ocidentalizado e integrado na Europa. Mas com Sá Carneiro vivo, a história política do país teria sido certamente mais interessante.
Rui Ramos
Da revista “Sábado”, 30 de Novembro de 2010.