Da série "senhor k." (II)
O senhor k. vai ao SAP
Falemos então de saúde. Tomemos como exemplo o senhor K. O senhor K. ganha 700 euros por mês – menos do que a média nacional – e tem contratos mensais com uma empresa de trabalho temporário, embora exerça funções numa grande empresa nacional. Um dia, o filho do senhor K. queixa-se de dores no ouvido. É sábado e o senhor K., que faz os seus descontos para a Segurança Social e não tem seguro de saúde, leva o filho ao Serviço de Atendimento Permanente. Paga uma taxa mínima (3 euros?) por uma consulta que não demora mais de 10 minutos. O diagnóstico é uma otite. O médico receita um antibiótico. Uma semana mais tarde, o filho do senhor K. continua com dores. Regressam ao centro de saúde, pagam a taxa e são atendidos por outro médico. O antibiótico não era o adequado. Novo antibiótico. Uma semana depois, a criança ainda tem dores. Como o senhor K. não é maluco e a saúde do filho é uma coisa que o preocupa decide marcar consulta num médico particular. Paga 80 euros. A otite é violenta. A criança vai ter de levar injecções e vão ter de fazer uma análise para determinar que tipo de bicharoco é aquele. Quando tem o resultado das análises, o senhor K. regressa ao médico. Mais 80 euros. A criança apresenta melhorias mas vai ter de fazer um tratamento durante dois meses, porque com as otites não se brinca. A criança recupera e encontra-se bem.
Agora imaginemos que o senhor K. é funcionário público e ganha 1200 euros por mês. O filho queixa-se de dores nos ouvidos e o senhor KFP marca uma consulta no mesmo médico particular do sr. KTT (K trabalho temporário). Paga 8 euros. O estado paga o resto. Agora, expliquem-me lá onde é que está a justiça deste sistema de saúde tendencialmente gratuito? É que o sr. KTT nem se importaria de pagar 40 euros por uma consulta no centro de saúde. Ele não ganha muito mas a saúde do filho é uma coisa importante e o sr. KTT paga 30 euros de tlm, gasta 70 euros por mês em tabaco e, ocasionalmente, até compra o Expresso. Não se importaria mesmo nada de pagar por um serviço decente e justo. Gostaria de, pelo menos, ter uma oportunidade como a do senhor KFP, nem que tivesse de pagar mais pela consulta no particular. O que chateia o senhor KTT é que o Estado lhe venda a ilusão de um serviço de saúde universal e tendencialmente gratuito, e que seja ele, e outros como ele, a sustentar essa ilusão e, quando o senhor KTT tem necessidade de recorrer a essa ilusão, chega à conclusão que o melhor é ir directamente ao particular, ao perigoso mercado neo-liberal. E ainda chateia mais o senhor KTT o seguinte: ao mesmo tempo que lhe vende essa ilusão, o estado mantém um sistema de privilégio para os seus privilegiados funcionários. É que enquanto que o senhor KTT pagou 160 euros por duas consultas, o senhor KFP pagou 16. Lembremos que o senhor KFP ganha mais 50 % do que o senhor KTT. Não seria mais justo que o senhor KFP pagasse um pouco mais, até para benefício de outros funcionários públicos que ganham menos do que o senhor KTT?
Bruno Vieira Amaral