O regime que era uma pessoa
1. Este livro de Luís Nuno Rodrigues procura ser uma lente neutra e imparcial sobre o fim do Estado Novo e o início da III República. Para quem, como eu, não viveu este período, a publicação destes livros é essencial. São precisos mais.
2. Este Estado Novo onde Costa Gomes operava (um Estado Novo, digamos, tardio) não faz lembrar nenhum daqueles modernos sistemas políticos acabados em ‘ismo’. Ao invés, este Estado Novo faz-me lembrar o ambiente ditatorial da corte dos reis absolutistas.
O Estado Novo, tal como essas cortes do antigamente, girava em redor de intrigas palacianas. A política era a intriga. E o poder de Salazar advinha do facto de ser o único que sabia todas as intrigas, rumores, boatos e segredos. O regime não era uma ideologia ou um sistema institucional. O regime era um permanente equilíbrio alcoviteiro feito por Salazar. Com a queda de Salazar, Marcello não podia segurar o regime, porque o regime era Salazar. Esta fraqueza institucional é bem exemplificada por um dos momentos mais dramáticos relatados neste livro. Costa Gomes era Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e, mesmo assim, recebeu os capitães do MFA (Costa Gomes concordava com as reivindicações corporativas do MFA). Marcello Caetano criticou essa posição. Em conversa com Marcello, Costa Gomes disse que não tinha recebido os capitães em instalações oficiais, mas na sua própria casa. “Ainda pior”, respondeu Caetano; “Ainda pior, não”, replicou Costa Gomes, acrescentando: “Em minha casa, recebo quem quero”. E Costa Gomes, enfrentando assim o Presidente do Conselho, manteve-se no seu cargo. Isto revela a fraqueza institucional de Marcello. E revela o pessoalismo permanente da cultura política portuguesa. Tivemos um regime durante quase meio século que assentava numa única pessoa.