O morto que anda
Há uns anos, um filme com Sean Penn ensinou-nos que nas prisões americanas se grita “dead man walking” quando um condenado é levado à execução. Não sei se alguém já se lembrou de gritar o mesmo à passagem de José Sócrates nos corredores do nosso poder. Seria talvez um caso de mau gosto, mas não de exagero. Há ainda, no entanto, dois erros que todos podemos cometer a propósito deste defunto ambulante.
O primeiro diz respeito à causa do óbito. O situacionismo, pelas suas variadas bocas, não quer vislumbrar mais do que uma questão de “personalidade”. É uma miopia muito conveniente para quem nada quer mudar a não ser nomes. Só que o grande problema de Sócrates não é o Freeport ou a Face Oculta, mas outra coisa: o fracasso da ideia de fazer crescer o país, num contexto de união monetária europeia, através do investimento público em educação e em infra-estruturas. Foi esse o roteiro que Sócrates perfilhou em 2005. Por isso, nunca teve alternativa na oposição, já que desde a década de 1990 que o regime, da direita à esquerda, não quer seguir outro caminho. O projecto falhou com ele, que talvez seja um pecador, como teria falhado com outro, mesmo se fosse um santo. Se Sócrates, segundo os seus inimigos, tem dificuldade em lidar com a “verdade”, a restante classe política não mostra menos dificuldades em lidar com a verdade do fracasso de Sócrates.
O segundo erro consiste numa tentação: aproveitar o facto de o morto ainda andar -- para o pôr a andar por conta de outrem. A súbita abnegação patriótica da classe política, mais uma vez da direita à esquerda, é revelador: ninguém deseja adicionar outra crise à que já há; todos se dispõem a deixar Sócrates chegar ao fim do “ciclo”. Não se trata apenas de esperar que o governo caia por si. A semana passada, num assomo de sinceridade, António Pires de Lima veio aqui confessar o esquema. Sócrates ficaria no governo, como uma espécie de títere de faxina, para limpar a casa até aos 3%. Só então a oposição apareceria para reclamar as chaves e fazer-nos o grande favor de começar a sua obra de reforma. Em suma: a boa moeda recusa-se a voltar e quer obrigar a má moeda a continuar em circulação. Não duvido das boas intenções. Mas o resultado seria termos, nos próximos anos, uma política resumida a transacções técnicas de bastidores, como as do último orçamento, e uma governação anónima e de responsabilidade limitada. Acreditam que é assim que se criaria ambiente para a tal reforma, se é esse o objectivo?
O pós-socratismo não será fácil. Sem Sócrates como tema de conversa, seremos forçados provavelmente a falar do verdadeiro problema: o nosso modo de vida. Os portugueses terão de optar: ou tapamos apenas os buracos maiores e prosseguimos o declínio económico e social, talvez sob tutela europeia, como uma espécie de Kosovo financeiro; ou rompemos com “isto” e trabalhamos para mudar de vida. O governo de que o país precisa é aquele que o obrigue a dizer finalmente o que quer. Até pode ser “isto”, por não poder ser outra coisa – mas convém-nos saber de uma vez por todas.
Publicado no Expresso, 20 de Fevereiro de 2010.