Um ano entre crises
Em Portugal, o ano de 2009 desenhou um percurso: da crise do sistema financeiro internacional à crise do sistema político doméstico, isto é, da crise que houve à crise que vai haver.
A crise financeira.
O ano começou na ressaca da crise financeira internacional de 2008. Os esquerdistas mais exaltados anunciaram o fim do “liberalismo” e rebuscaram os caixotes de lixo da história à procura do “socialismo”. Parecia que o muro de Berlim, vinte anos depois, se tinha levantado outra vez. Mas a crise desenrolou-se de modo a frustrar toda essa expectativa ideológica. A crise, em 2009, provou que o Estado não é mais transparente nem mais disciplinado do que os mercados.
Ao longo do ano, o país teve três orçamentos (Novembro de 2008, Janeiro de 2009 e Dezembro de 2009). O governo prometeu inicialmente que Portugal ia ser poupado e que as contas públicas não seriam afectadas. O primeiro orçamento previa um crescimento económico de 0,6%, desemprego de 7,7%, défice equivalente a 2,2% do PIB e dívida pública a 66%. Não foi assim. No fim do ano, estimava-se para Portugal a maior retracção económica desde 1975 (3,7%), o desemprego mais alto de sempre (10,2%), o maior défice desde 1981 (8,5%) e uma dívida pública directa de 80%.
Nos últimos meses de 2009, tratava-se de evitar a “bancarrota”, já não dos bancos, mas do Estado. Pior: as perspectivas de crescimento económico em Portugal mantiveram-se, como antes da crise, entre as mais baixas da economia europeia. Fatalmente, há-de voltar a falar-se em “reformas”. As eleições europeias de Junho já confirmaram o predomínio conservador a nível europeu. A viragem de página ideológica não se deu. Esse foi o mais importante facto político de 2009.
A crise política.
O milagre da multiplicação dos orçamentos serviu ao governo de José Sócrates para passar por três eleições ao longo do ano sem revelar a gravidade da situação financeira. Nem por isso, porém, as perspectivas pareceram inicialmente radiosas. No princípio de 2009, o caso Freeport quase tirou o tapete ao primeiro-ministro. A sequência eleitoral, porém, ajudou o governo. A derrota do PS na eleição europeia de Junho criou grandes expectativas às oposições, que logo se imaginaram a viver já o pós-socratismo.
A aparente fragilidade do governo teve, no entanto, um efeito inesperado: transferiu a “arrogância” dos ministros para as oposições. O PSD convenceu-se de que, para ganhar, bastaria demonizar Sócrates. O BE acreditou que lhe era permitido propor um novo PREC. Ou seja: à esquerda e à direita, as oposições não souberam dar aos portugueses uma alternativa credível ao governo. Sócrates, pelo seu lado, corrigiu-se para a campanha eleitoral. Quase no fim, outro escândalo ajudou-o: o das “escutas” de Belém, que amolgou a instituição que tinha representado a verdadeira alternativa ao governo – a presidência da república.
Em Setembro, o PS pode festejar uma derrota com sabor a vitória, enquanto as oposições tiveram de fingir que as suas vitórias não sabiam a derrota. Nas legislativas, o PS teve o pior resultado desde 1995 e perdeu a maioria, mas ficou à frente; nas autárquicas de Outubro, reforçou-se em Lisboa. Para as oposições, o aumento do número de deputados não compensou as frustrações: o PCP passou para último partido; o BE não chegou a terceiro, nem sequer conseguiu fazer maioria com o PS; e o PSD coleccionou a quarta derrota em cinco eleições legislativas desde 1995. Só ao CDS as legislativas correram bem, mas apenas para as autárquicas demonstraram a sua vulnerabilidade, tal como a do BE. O ano político de 2009 não deixou vencedores em pé.
O ano começou com críticas à maioria absoluta, e acabou com lamentações sobre a maioria relativa. De facto, a política portuguesa entrou, em 2009, num terreno invulgar. O país viveu com maiorias absolutas em 21 dos últimos 30 anos. Os governos minoritários, como os de 1985-1987 e 1995-2001, coincidiram com épocas de prosperidade. A novidade é esta: Portugal tem um governo sem maioria e também sem dinheiro.
Ficam muitas interrogações para 2010. Bastarão combinações parlamentares para assegurar a “governabilidade” num país em que governar tem sido sinónimo de fazer despesa? Arranjará a classe política, depois de arrastada na lama dos “casos” deste ano (BPN, Freeport, “escutas” de Belém, Face Oculta), autoridade para sujeitar os portugueses ao duche frio financeiro que gregos e irlandeses já se preparam para sofrer?
Mais: em 2009, com juros baixos, inflação reduzida e o aumento de salários da função pública, a população empregada mal sentiu a crise, a não ser psicologicamente. O aperto, para a maioria, ainda está para chegar. O regime de partidos construído em 1974-1975 já resistiu a muita coisa. Aguentará outra vez?
Publicado no Correio da Manhã