Um país faz-se com justiça, e não com “justiça social”
Ensaio publicado no Expresso de 24 de Dezembro
A lentidão do Ministério Público e dos tribunais está a corroer a nossa democracia. Há vários anos que a nossa vida política não é determinada pelos votos, mas sim pelas “escutas” judiciais. Os partidos permitiram que os magistrados funcionassem em auto-gestão, e agora campeia por aí uma ilegítima “judicialização” da vida política. Mas este caos judicial não destrói apenas a nossa democracia. Também destrói a nossa economia. Este efeito económico é menos mediático, mas é igualmente destrutivo. A economia portuguesa é travada diariamente por uma justiça que é incapaz de punir os caloteiros. Seja onde for, o Estado de Direito é a antecâmara do crescimento económico. Enquanto a nossa justiça não funcionar a uma velocidade aceitável, todas as reformas ou medidas económicas esbarrarão na ineficiência judicial. Portanto, a reforma económica mais urgente é, paradoxalmente, a reforma da justiça.
Durante três décadas, os partidos da III República desprezaram o estado de direito, isto é, desprezaram a “governança da justiça”; com essa inércia, o poder político permitiu que os magistrados continuassem a viver em 1970. O problema começa precisamente aqui: a nossa economia vive na agitação europeia e global de 2009, mas os nossos magistrados continuam na lentidão rural do Portugal de 1970. Mas, atenção, a raiz do mal está na classe política, que nunca forçou os magistrados a saírem do quentinho de 1970. E esta negligência resulta de uma falha na forma de pensar da elite política. Se repararem bem, os políticos portugueses nunca falam em “justiça”. Falam apenas de uma coisa que nunca ninguém viu: a tal “justiça social”. O nosso discurso político está saturado com essa expressão. A “justiça social” é o tique verbal que mais aparece na boca dos líderes partidários, desde Louçã a Portas. Ora, esta constante invocação da “justiça social” acabou por deturpar o próprio significado da palavra “justiça”. A palavra “justiça” nunca aparece sozinha; só aparece quando alguém invoca a “justiça social”, o santo graal português. Nas cabecinhas do regime, o conceito de “justiça” é defendido pelo estado social, e não pelo estado de direito. Basta olhar para a última campanha eleitoral: nenhum partido falou nas questões do estado de direito (tribunais, ministério público, etc.), mas todos se assumiram como guardiões do estado social. Todos falaram do mítico pequeno empresário, mas ninguém abordou o maior problema do tal pequeno empresário: a lentidão da justiça.
Os partidos querem dar subsídios e linhas de crédito aos empresários, mas não têm coragem de resolver o problema que está a montante: a ineficácia da justiça que torna a vida do empresário num inferno. Em Portugal, aqueles que desrespeitam os contratos ficam impunes. Toda a gente sabe que ficar a dever dinheiro não tem consequências. Por inacção dos nossos tribunais, é impossível reaver uma dívida por meios legais. Neste ambiente pré-moderno, um porteiro de discoteca (que bate no caloteiro) é mais útil do que um advogado (que se bate em tribunal) na hora de reavermos as dívidas.
Os gestores mediáticos que saltitam entre empresas públicas e empresas com golden share conseguem aguentar dez calotes. Esta elite de gestores (não são empresários) não precisa, de facto, de uma justiça rápida. Precisa só do número de telemóvel do primeiro-ministro. Mas os milhões de pequenos empresários não têm capital para aguentar calotes seguidos. Para saírem desta agonia, estes empresários não precisavam do número do primeiro-ministro. Precisavam apenas de uma justiça que os protegesse. Porém, no seu dia-a-dia, os empresários vêem que a justiça é sua principal inimiga. Há dias, um pequeno empresário perguntava-me: “se eu não posso reaver o dinheiro que me devem de forma legal, votar serve exactamente para quê?”. Este justo desespero mostra que a economia real funciona ao nível do pré-direito, do pré-contrato. Na ausência do primado do contrato, os empresários não confiam uns nos outros, têm medo de aceitar novos clientes, pois têm receio de apanhar com novos caloteiros.
Eis, portanto, o caricato perfil económico de Portugal: a montante, os governos são incapazes de resolver a lentidão da “justiça”, o factor que mais perturba as empresas. Depois, a jusante, os mesmos governos invocam a “justiça social” para esbanjar dinheiro em ajudas às ditas empresas. Perante isto, existem duas hipóteses explicativas: os nossos políticos são burros ou cínicos. A hipótese da burrice diz-nos que os políticos não percebem que qualquer medida ou reforma económica esbarra na ineficácia da justiça. A hipótese cínica diz-nos que os partidos do regime não estão mesmo interessados na construção de uma economia de mercado assente no primado do direito. Se calhar, os partidos querem mesmo construir uma “economia dirigida”. Dirigida por quem? Pelos boys dos partidos, ora essa. Assim, claro, não é preciso justiça. Assim, só é preciso o número de telemóvel do primeiro-ministro. Se não se importam, eu prefiro esta hipótese mais cínica. Porque, na verdade, Portugal não tem uma economia moderna assente na “justiça”, e está à mercê da vontade dos políticos que se julgam portadores do fogo sagrado da “justiça social”.
Além da vitalidade económica, a lentidão da justiça está a destruir a nossa fibra moral. Como é visível todos os dias, os portugueses não acreditam no seu próprio país. Não existe coesão social. Ou seja, não existe patriotismo (“patriotismo” é o nome que os antigos davam à “coesão social”). E, mais uma vez, a elite política afirma que isso é uma consequência da falta de “justiça social” e da “assimetria de rendimentos”. Mais um erro faraónico. A elite portuguesa não percebe que a coesão social – em democracia - alcança-se através da “justiça” e não através da “justiça social”. Podemos ter o estado social mais avançado do mundo, mas não teremos coesão social enquanto não possuirmos um estado de direito forte. Aquilo que dinamita a coesão patriótica de uma democracia não é a assimetria económica, mas sim a assimetria legal. Ali na rua, a “Maria” não está a perder o seu patriotismo só porque vêem “ricos” do outro lado cidade. O patriotismo está a evaporar-se, porque a “Maria” percepciona a existência de uma casta de pessoas que vive acima da lei. E esta casta de impunes não é composta necessariamente por “ricos” (os políticos não são ricos). O exemplo dos EUA é elucidativo a este respeito. No sistema americano, não existe a tal justiça social alimentada pelo tal estado social. Mas alguém duvida que aquele país é mais coeso (mais patriota) do que Portugal? Sucede que a fortíssima coesão social americana é mantida por um estado de direito rápido e eficaz. Não por acaso, Bernard Madoff já foi condenado. Em Portugal, “Maria”, a pequena empresária, vê os “Madoff” portugueses a passar sempre entre os intervalos da chuva. Meus senhores, o nosso veneno não é a carteira dos “ricos”. Aquilo que nos está a envenenar é a impunidade legal dos “intocáveis”. A “justiça social” falhou. É a hora da Justiça, meus senhores.