I. No diário Tempo Contado, Rentes de Carvalho confessa a admiração por um romance de João Ubaldo Ribeiro: Sargento Getúlio, esse fabuloso retrato do sertão brasileiro feito através de um vertiginoso monólogo. Nesse livro, Ubaldo capta o vocabulário das gentes locais, e o dito monólogo é feito com esse vocabulário popular e até com os erros ortográficos e gramaticais. Rentes não tem esta ambição quase etnográfica de Ubaldo, mas também recupera um português antigo, um português telúrico que estava esquecido. Para a geração educada na americanização da linguagem (andar à porrada é bullying; trabalhar é networking), o português de Rentes é quase uma nova linguagem: "monturo", "vou-me a passear pela alameda", "pertinácia", "felizmente chegamos sem empeno", "amesendamos num restaurante", "dia cinzento como o de ontem, mas morrinha em vez de nevoeiro", "no quarto de banho ponho-lhe um esparadrapo","manhã gris, ventosa e tristonha".
II. Um dos elementos que fascina nos livros de Rentes é a presença constante do choque entre Amesterdão (sítio onde vive) e a aldeia transmontana (a sua terra). Um exemplo retirado de Tempo Contado: "na televisão (holandesa) um longo programa sobre orgasmos, técnicas de coito, aberrações, confissões (...) os presentes a discutir com a desinibição que se tornou costumeira (...) recordo como quando me encontro na aldeia se me tornam sensíveis os profundos tabus que lá continuam a envolver a sexualidade. É como se ela não existisse, ao mesmo tempo que as pessoas recebem através da televisão um bombardeio de erotismo. E pergunto-me como deve ser melancólica e frustrante a vivência sexual da minha gente, que por um lado vê a liberdade, mas por outro continua presa a formidáveis cadeias". Um autor com esta amplitude térmica é um feliz achado.