Esperança
"(...) Deste modo, ao falar da Holanda, Rentes acabou por escrever uma das melhores reflexões sobre o que é ser-se português. Sim, na rua, na coisa pública, o patriotismo é impossível em Portugal. Todavia, em casa, junto da família e dos amigos, os portugueses são reis e senhores de um certo patriotismo das quatro paredes: o afecto, aquele carinho que leva um certo escritor luso-holandês a chorar enquanto vê o filme do casamento de uma rapariga da aldeia.
Este tecido mimoso, que é o nosso lado solar, tem a sua melhor expressão em Ernestina. Em termos meramente literários, Ernestina é uma obra menos sofisticada do que A Amante Holandesa, mas, em compensação, deixa um lastro emocional difícil de esquecer. Neste romance autobiográfico, Rentes descreve a dureza da sua meninice no Porto e em Estevais. Sim, há ali muitas caras tisnadas e muitas mãos calejadas. Mas também há carinho. Ernestina é um livro duro, mas nunca corta a esperança, e acaba por nos encantar com essa ternura áspera.
Em Tempo Contado, Rentes de Carvalho deixa o seguinte desabafo:
"se não fosse a melancolia (...), a minha ambição seria escrever livros onde avultassem as situações felizes, as personagens bondosas e as atitudes optimistas. Não me refiro a lamechices (...) mas a obras em que o leitor pudesse encontrar amparo para as suas ânsias, encorajamento na luta contra as incertezas, alguns sorrisos e um final que, ao rebentar com o colorido e a força do buquê de um fogo-de-artifício, lhe confirmasse quanto vale a pena viver".
Estas linhas foram escritas antes ou durante a escrita de Ernestina. Não por acaso, podemos garantir que o final de Ernestina tem esta força redentora tão desejada pelo autor. Até faz lembrar o final do 400 Golpes de François Truffaut: vemos ali um menino a correr e ficamos emocionados sem saber bem porquê. Há ali a força da redenção (sim, redenção: a única forma de esperança que um adulto vacinado tem direito a sentir). E esta esperança áspera, esta possibilidade de redenção acaba por passar do menino para o país, esse país que encontrou um inesperado biógrafo na figura de José Rentes de Carvalho".
Final do ensaio publicado na Ler de Julho de 2011 sobre José Rentes de Carvalho, o meu herói, o meu brother de 82 anos.