Na RTP, num horário decente
Uma multidão de observadores ficou surpreendida com a presença da espiritualidade no último filme de Clint Eastwood, "Hereafter". Confesso que não percebo o espanto. A redenção - tema espiritual e religioso por excelência - é uma constante na obra do mestre. Em "Imperdoável", "Mundo Perfeito"ou "Crime Real", as personagens de Eastwood esboçam o caminho da redenção. Ora, "Gran Torino" é a sublimação dessa marca eastwoodiana, é a parábola perfeita sobre a redenção. E, meus caros cinéfilos, o trajecto redentor de um durão pode ser tão emotivo como o "Bambi". Não choramos, mas ficamos com um nó na garganta durante uns dias. Ou seja, choramos em câmara lenta, como bons adultos vacinados. "Gran Torino" é isso tudo.
Nesta parábola surpreendente, Clint Eastwood é Walt Kowalski, um William Munny ("Imperdoável") do faroeste suburbano. Kowalski é um veterano da guerra da Coreia, ex-operário e um misantropo dos puros. A relação com a família, por exemplo, assemelha-se a uma zona de guerra. Além disso, é racista até aos cabelos. E, como está bom de ver, o nosso durão não gosta da presença de emigrantes lá no bairro. Para seu desespero, alguns até são asiáticos, como os seus vizinhos Hmong. Este é um homem seco, amargo, odioso, ressentido com a vida. Porém, no meio deste deserto amoral, surge uma relação que resgata Kowalski. Devido à violência dos gangues, o nosso durão amoral começa a desenvolver uma relação paternal com um miúdo asiático, Thao. Desta forma inesperada, Walt Kowalski encontra a sua Estrada de Damasco numa sucessão de passinhos de bebé que nos desarma.
Como existe gente distraída (e herege), não irei contar o final. Digo apenas que "Gran Torino" é uma história sublime, contada de forma simples. Clint Eastwood sabe que a história fala por si, logo, não oferece malabarismos de câmara, montagem frenética ou fotografia à Storaro. Ser um clássico é isso mesmo: contar uma história sem formalismos ocos. Caríssimos cinéfilos distraídos, aproveitem a deixa do Expresso e vejam o filme, por favor. E tenham lenços à mão. Ao pé de "Gran Torino", o "Bambi" é mesmo para meninos.
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