Em 2012, lembrem-se deste ensaio
Num mundo pós-europeu, a Alemanha precisa de nós, e nós precisamos da Alemanha
I. 1956: eis a data mais desprezada no processo de construção europeia. Nesse ano, franceses e britânicos foram humilhados no Suez. Foi uma humilhação à moda antiga, daquelas que implicam retiradas militares e penitências diplomáticas. Podemos dizer que 1956 simbolizou o início do mundo pós-europeu, o nosso mundo, o mundo que atingiu a maturidade em 2008, o mundo onde os europeus já não têm o poder para impor a sua vontade.
II. A partir de 1957 (Tratado de Roma), a Europa pós-Suez começou a reinventar-se através de uma linguagem que recusava o poder. Aqueles que continuaram a usar o "poder" como variável de análise passaram a ser classificados de reacionários, soberanistas ou belicistas. Desta forma, sucessivas gerações de europeus foram educadas num pressuposto teórico que rezava assim: vivemos num mundo pós-Estado (o Estado já não é o centro da política internacional) e pós-poder (o poder não interessa, o que interessa é o diálogo no TPI e ONU). Neste quadro mental, as relações de poder entre Estados deixaram de ser pensadas, e tudo ficou encoberto por uma nuvem de palavras e expressões apolíticas: "integração", "partilha de soberania", "solidariedade europeia", "direito internacional", "multilateralismo", etc. No fundo, a elite europeia imaginou um mundo onde toda a gente se sentava à mesa do "diálogo". Nesta Távola Redonda com Habermas no lugar do Rei Artur, a Bélgica tinha o mesmo peso da China (na arena internacional), e Portugal era tão importante como a Alemanha (na arena europeia). Ora, é por isso que - neste momento - a elite europeia não consegue pensar a ascensão das novas potências asiáticas. Pior: é por isso que não consegue pensar a ascensão da nova Alemanha pós-culpa.
III. Ante este vazio intelectual, nós, europeus, temos de desenvolver uma linguagem política com a capacidade de compreender o poder da nova Alemanha. Temos de criar um raciocínio político que re-legitime a relação entre a Alemanha e os estados europeus. E isto tem de ser feito de forma clara, sem o dialecto obscuro e apolítico dos tratados. Neste sentido, parece-nos interessante convocar um termo que é usado na análise às relações entre os EUA e os seus aliados: "ordem constitucional".
IV. Tal como salientou John Ikenberry, Washington, ao longo das últimas seis décadas, criou uma ordem política composta por fóruns económicos (OMC, FMI, Banco Mundial) e também por alianças que se transformaram em instituições (NATO). Esta ordem política altamente institucionalizada é mais conhecida pela sua alcunha: o Ocidente. Quando falamos em Ocidente, estamos a falar deste conjunto de organizações que prendem Washington a capitais menos poderosas. Por outras palavras, o Ocidente assenta num "acordo constitucional": os EUA aceitam restringir o seu poder através de instituições que forçam a partilha de poder (ex.: os europeus tiveram sempre a direcção do FMI), e, em troca, os seus aliados consideram legítima a hegemonia americana. Ou seja, os checks and balances exteriores de Washington são os seus aliados. E, atenção, não há aqui anjinhos. Esta ordem constitucional não faz desaparecer o poder americano. Porém, esse poder é domesticado, civilizado, filtrado. Através desta ordem constitucional aplicada à política internacional, a hegemonia americana torna-se mais previsível aos olhos dos outros Estados.
V. A relação entre a nova Alemanha e os outros estados da UE está a ser construída nestas bases.
VI. Ora, já existe o elemento que consagra o acordo constitucional entre o pólo mais forte (alemães) e os pólos mais fracos (nós, os outros europeus). Esse elemento constitucional chama-se Moeda Única e o respectivo PEC. As pessoas têm memória curta, e por isso já se esqueceram do seguinte encadeamento histórico: a reunificação da Alemanha (1990) causou uma onda de pânico na Europa; Thatcher e Mitterrand quiseram bloquear a reunificação alemã; a consumação da Moeda Única é filha desse medo provocado por uma Alemanha reunificada. Portanto, no meio do atual ruído técnico e económico, não podemos esquecer que o Euro é o resultado de um trade-off constitucional entre Berlim e a Europa: a Alemanha abdicou do Marco, e, em troca, o resto da UE aceitou cumprir um conjunto de regras germânicas (PEC). Este é o acordo político que rege a vida da UE. Neste sentido, as novas exigências alemães (ex.: limites constitucionais à dívida) devem ser entendidas como um aprofundamento da ordem constitucional já existente entre Berlim e as restantes capitais. Na relação entre Alemanha e Europa, estamos a assistir a uma mudança de grau e não de natureza. Um pormenor pormaior.
VII. Esta dimensão política da nova "questão alemã" é ainda reforçada por um dado que fica sempre esquecido: o emancipado eleitorado alemão. No passado, o eleitor alemão calava-se, e passava o cheque. Hoje, o eleitor alemão ainda passa o cheque, mas exige condições. E ainda bem. Em 2011, a Europa não podia continuar a ser construída em cima do fantasma de Hitler. A Europa de 2011 não podia ser edificada no desrespeito pela democracia da Alemanha. Quando impõe condições aos outros Estados, Merkel está a gerir - precisamente - a democracia alemã, isto é, está a gerir as percepções dos cidadãos germânicos, que começam a ficar irritados com o Euro e com a UE (um perigo). Ou seja, Merkel está a tentar construir um cenário que torne impossível o regresso da Alemanha ao Marco (um perigo mortal).
VIII. Em Portugal, muitos dizem que o nosso país estaria melhor fora do Euro. Pois, de facto, o acordo político em redor do Euro dizia respeito à Europa central, dizia respeito à Alemanha e aos suas vítimas clássicas, sobretudo França e Benelux. Sim, Portugal podia ter evitado a entrada no Euro. Mas agora é tarde. Depois, muitos pensam que a Europa - no seu todo - estaria melhor sem o Euro. Na resposta, voltamos a frisar um ponto: agora é tarde. Além disso, uma UE sem o Euro seria mais violenta para os países pequenos. O Euro institucionaliza o poder da Alemanha. Uma Alemanha com o Marco seria mais poderosa do que esta Alemanha do Euro. Sem o Euro, Berlim projectaria o seu poder de forma mais imprevisível. O Euro obriga a Alemanha a lutar com luvas no ringue da UE. Se Berlim tirasse as luvas, a coisa ficaria - literalmente - mais negra e caminharíamos para um futuro imprevisível e para o qual não teríamos bússola. Nós, europeus, precisamos desta ordem constitucional dentro da Europa.
IX. E também necessitamos deste envelope institucional fora da Europa. A Alemanha é demasiado grande para a Europa, mas é demasiado pequena para um mundo com a China, a Índia e os EUA. Portanto, a Alemanha devia saber que precisa dos restantes Estados europeus. E o resto da Europa devia saber que necessita da Alemanha para enfrentar este mundo pós-europeu inaugurado em 1956.