Crónica de 20 de Agosto
O meu avô e a esquerda
O meu avô, comunista dos quarenta e sete costados, ensinou-me a "desconfiar do Poder" (assim mesmo, com uma maiúscula sublinhada por aquele vozeirão). Para o meu avô, o "Poder" estava nos banqueiros. É verdade que encontrei caminhos distintos do meu patriarca barbudinho, mas acabei por seguir o conselho avoengo: um brutal cepticismo, ontologicamente colado à minha pele semi-alentejana, leva-me a desconfiar de banqueiros e do crédito. E desconfio dos bancos pela mesma razão que desconfio dos partidos: o poder, seja ele político ou financeiro, deve ser olhado de esconso. O céptico, alentejano ou não, nunca baixa a guarda. Neste sentido mui visceral, nunca pedi dinheiro emprestado e, acima de tudo, não gosto de ver o meu país a viver do crédito, fingindo que é um sultanato mediterrânico. É por isso que defendo a imposição de um teto constitucional que limite o acesso de Portugal aos mercados da dívida.
Sendo um esquerdista coerente, o meu avô era ainda mais radical do que eu. Para ele, a constitucionalização do limite da dívida não seria suficiente. Apenas a proibição do acesso aos mercados poderia satisfazer o meu ancião. O mestre Raposo detestava os mercados, logo, queria impedir que Portugal pedisse dinheiro a esse capitalismo global. "Não pedes dinheiro ao demónio quando sabes que ele é o demónio", dizia ele. Devidamente imune ao materialismo histórico, esta teodiceia raposiana era coerente. O Sôr Agostinho não era louco, era apenas coerente com as suas crenças, isto é, queria um Portugal fechado, a viver do que tinha, sem a loucura dos dinheiros emprestados pela "agiotagem", recebendo apenas ajuda dos países amigos, como o Laos ou Coreia do Norte (desculpe, avô, mas já não há a Checoslováquia).
Posto isto, o meu avô não reconheceria a esquerda de hoje, a começar pelo PCP. Os herdeiros de Cunhal são contra a constitucionalização da dívida. O PCP, que devia ser o primeiro a tentar separar Portugal dos maléficos mercados, não quer esta medida. E, para mal dos nossos pecados, o centro-esquerda não parece muito distante desta posição. Quando defendeu o teto constitucional, Luís Amado foi rotulado de "neoliberal" pelo PS. A hipocrisia é notável: de manhã, o dr. Soares & afilhados dizem que o mercado financeiro é o demónio global, o sicário universal dos povos; depois, à tarde, os mesmos socialistas não apoiam a limitação do acesso a esse temível mercado. Então como é? Como é que ficamos? O problema é que a governação socialista depende dos mercados. O problema é que o socialismo local tem sido financiado pelo capitalismo global. Este é, aliás, um dos segredos de polichinelo do nosso tempo: sem os mercados, sem o "capitalismo de casino", a esquerda não sabe governar. A esquerda tem financiado a sua "justiça social" com o dinheiro da "malévola especulação". A crise de hoje representa o corte deste cordão umbilical omnipresente, mas nunca comentado (é segredo, avô). Sem o acesso ao reino das agências de notação, a esquerda está a ficar desorientada, sem bússola. Era por isto que o meu avô não queria a esquerda viciada nos mercados. É por isto que a esquerda precisava de ler as prosas que o grande Agostinho Raposo deixou lá nas terras situadas entre o Sobralinho e a Pouca Sorte.