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Eu sou, de facto, um vil traidor da pátria.
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Eu sou, de facto, um vil traidor da pátria.
Je voudrais écrire tout ce que je vois, Flaubert
Lucien Freud dizia só ser capaz de pintar o que via.
Amartya Sen é um dos grandes intelectuais vivos; Identidade e Violência é um dos grandes ensaios editados neste século. Ponto. Este livro é normalmente apresentado como a derradeira crítica à teoria do choque de civilizações. É verdade que Sen critica, e bem, Samuel Huntington. Porém, as críticas que Sen lança sobre o seu colega de Harvard não trazem nada de novo. Identidade e Violência é realmente inovador e corajoso nas críticas que lança sobre o multiculturalismo.
Tal como a direita do choque civilizacional, a esquerda do multiculturalismo tem um «problema metodológico básico» (p. 92): eleva a comunidade/religião à condição de identidade única dos homens, desprezando, assim, todas as outras identidades (profissão, ideias políticas e morais, etc.). Se a tese de Huntington reduz o mundo a «uma federação de religiões» (p. 14), o multiculturalismo transformou a Grã-Bretanha numa «federação de comunidades» (p. 160). Para os multiculturalistas, a cultura é uma realidade tão definitiva e imóvel como a biologia e, por isso, o Estado deve financiar o imobilismo cultural. Entre outras coisas, a tribo multiculturalista afirma que «não podemos invocar critérios de comportamento racional que não os que ocorrem na comunidade a que pertencemos (p. 64). Este relativismo foi a base da velha direita romântica, nacionalista e autoritária.
O que é uma política multiculturalista? Aqui fica um exemplo particularmente bárbaro (criticado por Sen ao longo do livro): as crianças muçulmanas que nascem no Reino Unido frequentam escolas de fé (faith schools) patrocinadas pelo Estado. Ou seja, o Estado multiculturalista britânico financia e legitima um ensino baseado na exclusividade da fé. Se nasceu muçulmana, criança X vai para uma escola exclusiva para muçulmanos; a criança é educada no culto da «aceitação acrítica da fé em detrimento de uma ponderação crítica» (p.212). E, de forma bizarra, os multiculturalistas dizem estas políticas servem apenas para defender a liberdade. Identidade e Violência desmonta esta fraude. O multiculturalismo é uma política autoritária e reaccionária que, por artes mágicas, foi revestida como uma aparência libertária e progressista: «apesar das implicações tirânicas de arrumar as pessoas em categorias rígidas que correspondam a comunidades específicas, esta visão é frequentemente interpretada, de forma bastante desconcertante, como aliada da liberdade individual» (p. 207). Os multiculturalistas de hoje, tal como os nacionalistas do passado, privilegiam a pureza da comunidade em detrimento da liberdade individual. São inimigos da liberdade.
No Ocidente, vivemos, à direita e à esquerda, uma época reaccionária e marcada por um espírito contra-iluminista. É curioso que seja um indiano a contestar esta atmosfera. Sen é o humanista, o iluminista, o kantiano que o Ocidente já não tem.
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