Parem tudo
O Valdo ainda mete cuecas.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
O Valdo ainda mete cuecas.
Perante Manuel Alegre, é tentador estar desprevenido: o velho lírico, sempre pronto para “qualquer coisa de louco e heróico” (como anunciou no último Expresso), a eterna pedra no sapato do PS, a vítima dos abraços de Louçã -- quem melhor do que ele para garantir a Cavaco Silva um passeio de reeleição? Mas seria um erro menosprezá-lo. É preciso, mesmo contra alguma evidência, levar Manuel Alegre a sério.
Alegre terá logo uma vantagem: não precisa de justificar um mandato, e ainda para mais um mandato numa época de frustração. As zangas passadas com Sócrates emprestaram-lhe uma cor de independente. Se for escolhido pelo PS e não der satisfações ao BE e ao PCP, chegará à campanha moralizado por uma primeira vitória sobre as máquinas partidárias. Mas tudo isto, sendo importante, não é o mais importante.
Na referida entrevista, Alegre não escondeu um dos alicerces das suas esperanças: “sou uma pessoa transversal”, “ganho votos ao centro e até à direita” -- “da última vez, até monárquicos!” Tudo isto é sabido e geralmente aceite. Alegre é mesmo transversal: leva, segundo deixa constar, a vida de um morgado culto, entre caça e literatura; exibe, por outro lado, o cadastro de um antifascista de 1960. É o que sairia de um cruzamento de Che Guevara com o príncipe de Salina. Vale a pena explorar as origens e as consequências desta miscigenação.
A mistura que este patrício de esquerda pressupõe, entre a esquerda radical e a direita tradicionalista, nada tem de contra-natura. É mesmo a mais natural de todas, ao juntar todos aqueles que resistiram sempre contra a possibilidade de as massas acederem à prosperidade ou ao poder sem a intermediação dos seus superiores sociais (à direita) ou intelectuais (à esquerda). Têm um inimigo em comum: a modernidade, assente na democracia representativa e na economia de mercado. É esta comunhão na rejeição que explica o fascínio da esquerda de 1960 pela figura do aristocrata arruinado (veja-se o Barranco de Cegos de Alves Redol ou o Delfim de Cardoso Pires).
No século XIX, houve a aliança formal de setembristas e miguelistas na Patuleia. Alegre, com alguma habilidade, pode arranjar outra Patuleia, combinando a direita social e a esquerda ideológica. O ambiente é propício. A crise actual revelou os limites e desequilíbrios da nossa modernização. Desde a década de 1960, formaram-se classes médias, mas dependentes do Estado e inseguras; e apareceu, mais recentemente, uma nova intelectualidade liberal, mas sem peso político. As velhas classes sociais (de direita) e intelectuais (de esquerda) ainda impõem em Portugal os figurinos de respeitabilidade: que espanto, se fidalgos caçadores e estudantes antifascistas, mesmo já só em espírito, encherem de ar as suas velhas superioridades para uma última campanha, “louca e heróica”, contra Cavaco Silva, o símbolo mais recente do Portugal “moderno”?
A força de Alegre não virá da unificação das esquerdas, mas da conjugação dos reaccionários portugueses, de direita e de esquerda. Pode ser, se quiser e souber, o candidato da reacção. Nos tempos que correm, convém levá-lo a sério.
Publicado no Expresso, 16 de Janeiro de 2010.
Os Bizantinos, antes do fim, discutiam o sexo dos anjos; entre nós, que não temos anjos, propõe-nos a nossa nomenclatura que discutamos o dos cônjuges – embora sem voto na matéria. A questão parece ser esta: a um contrato matrimonial reconhecido pelo Estado entre duas pessoas do mesmo sexo, deve chamar-se “casamento” ou “união civil registada”? De um lado e do outro, dizem-nos que da escolha de designação depende o princípio ou o fim do mundo, e exigem-nos que tomemos partido.
Que pode pensar um cidadão que, tal como manda a constituição, não quer “discriminações”, e que, apesar dos versos de Philip Larken (“They fuck you up”...), acredita que a família, fundada em casamentos ou uniões, é ainda o ambiente menos mau para crescer e viver?
A verdade é que nada do que nos disseram até agora é suficiente para sairmos à rua. Acabarão os preconceitos contra os homossexuais só por às suas uniões civis se passar a chamar oficialmente casamento? As famílias vão dissolver-se apenas porque pessoas do mesmo sexo podem casar-se?
Chamar casamento à união civil registada entre pessoas do mesmo sexo é, simultaneamente, algo que não se deveria reivindicar como direito, e algo que, uma vez reivindicado, não se pode recusar a não ser como discriminação. Mas que diferença pode fazer? Sem “casamento gay”, os casamentos continuarão a ser, como os fez a lei e o nosso individualismo, contratos precários, num país em que é mais fácil para um cidadão divorciar-se do que despedir um empregado. Com “casamento gay”, poucos homossexuais optarão pelo estilo de vida recomendado pela “moral burguesa”. Na Holanda, onde o casamento entre pessoas do mesmo sexo é possível desde 2001, houve 2500 no primeiro ano e apenas 1100 em 2005 (em 71 000 casamentos). Ao fim de quatro anos, estimava-se que 0,3% dos homossexuais adultos estivessem casados, por contraste com 60% dos heterossexuais. Há-de ser assim: nos primeiros dias, teremos alguns activistas a casar para a televisão; depois, toda a gente arranjará mais que fazer.
Desculpem o meu cepticismo. Mas parece-me que a possibilidade de um casamento só ter noivos ou noivas é pouco para começar ou acabar uma civilização. No fundo, estas “causas fracturantes” em Portugal têm menos a ver com a vida social do que com a vida política. Falamos do “casamento gay” porque o PCP e o BE querem entalar o PS e porque o PS não se quer deixar entalar e, já agora, quer entalar a direita.
Os homossexuais entram nesta história como carne para canhão político. Basta pensar que entre os seus advogados, encontramos os comunistas, que criaram, nos países em que estiveram no poder, dos piores infernos do século XX para a homossexualidade (leiam as memórias de Reinaldo Arenas). Ou que o PS, para ficar de bem com toda a gente, não se importa de lhes dar com uma mão o casamento e com a outra, ao proibir adopções, a primeira discriminação legal. Com o devido respeito pelas boas almas a quem o caso excita, o que convém aqui ao cidadão é uma indiferença higiénica pelo que diz e faz uma classe política irremediavelmente cínica.
Publicado no Expresso, 9 de Janeiro de 2010.
Em Portugal, o ano de 2009 desenhou um percurso: da crise do sistema financeiro internacional à crise do sistema político doméstico, isto é, da crise que houve à crise que vai haver.
A crise financeira.
O ano começou na ressaca da crise financeira internacional de 2008. Os esquerdistas mais exaltados anunciaram o fim do “liberalismo” e rebuscaram os caixotes de lixo da história à procura do “socialismo”. Parecia que o muro de Berlim, vinte anos depois, se tinha levantado outra vez. Mas a crise desenrolou-se de modo a frustrar toda essa expectativa ideológica. A crise, em 2009, provou que o Estado não é mais transparente nem mais disciplinado do que os mercados.
Ao longo do ano, o país teve três orçamentos (Novembro de 2008, Janeiro de 2009 e Dezembro de 2009). O governo prometeu inicialmente que Portugal ia ser poupado e que as contas públicas não seriam afectadas. O primeiro orçamento previa um crescimento económico de 0,6%, desemprego de 7,7%, défice equivalente a 2,2% do PIB e dívida pública a 66%. Não foi assim. No fim do ano, estimava-se para Portugal a maior retracção económica desde 1975 (3,7%), o desemprego mais alto de sempre (10,2%), o maior défice desde 1981 (8,5%) e uma dívida pública directa de 80%.
Nos últimos meses de 2009, tratava-se de evitar a “bancarrota”, já não dos bancos, mas do Estado. Pior: as perspectivas de crescimento económico em Portugal mantiveram-se, como antes da crise, entre as mais baixas da economia europeia. Fatalmente, há-de voltar a falar-se em “reformas”. As eleições europeias de Junho já confirmaram o predomínio conservador a nível europeu. A viragem de página ideológica não se deu. Esse foi o mais importante facto político de 2009.
A crise política.
O milagre da multiplicação dos orçamentos serviu ao governo de José Sócrates para passar por três eleições ao longo do ano sem revelar a gravidade da situação financeira. Nem por isso, porém, as perspectivas pareceram inicialmente radiosas. No princípio de 2009, o caso Freeport quase tirou o tapete ao primeiro-ministro. A sequência eleitoral, porém, ajudou o governo. A derrota do PS na eleição europeia de Junho criou grandes expectativas às oposições, que logo se imaginaram a viver já o pós-socratismo.
A aparente fragilidade do governo teve, no entanto, um efeito inesperado: transferiu a “arrogância” dos ministros para as oposições. O PSD convenceu-se de que, para ganhar, bastaria demonizar Sócrates. O BE acreditou que lhe era permitido propor um novo PREC. Ou seja: à esquerda e à direita, as oposições não souberam dar aos portugueses uma alternativa credível ao governo. Sócrates, pelo seu lado, corrigiu-se para a campanha eleitoral. Quase no fim, outro escândalo ajudou-o: o das “escutas” de Belém, que amolgou a instituição que tinha representado a verdadeira alternativa ao governo – a presidência da república.
Em Setembro, o PS pode festejar uma derrota com sabor a vitória, enquanto as oposições tiveram de fingir que as suas vitórias não sabiam a derrota. Nas legislativas, o PS teve o pior resultado desde 1995 e perdeu a maioria, mas ficou à frente; nas autárquicas de Outubro, reforçou-se em Lisboa. Para as oposições, o aumento do número de deputados não compensou as frustrações: o PCP passou para último partido; o BE não chegou a terceiro, nem sequer conseguiu fazer maioria com o PS; e o PSD coleccionou a quarta derrota em cinco eleições legislativas desde 1995. Só ao CDS as legislativas correram bem, mas apenas para as autárquicas demonstraram a sua vulnerabilidade, tal como a do BE. O ano político de 2009 não deixou vencedores em pé.
O ano começou com críticas à maioria absoluta, e acabou com lamentações sobre a maioria relativa. De facto, a política portuguesa entrou, em 2009, num terreno invulgar. O país viveu com maiorias absolutas em 21 dos últimos 30 anos. Os governos minoritários, como os de 1985-1987 e 1995-2001, coincidiram com épocas de prosperidade. A novidade é esta: Portugal tem um governo sem maioria e também sem dinheiro.
Ficam muitas interrogações para 2010. Bastarão combinações parlamentares para assegurar a “governabilidade” num país em que governar tem sido sinónimo de fazer despesa? Arranjará a classe política, depois de arrastada na lama dos “casos” deste ano (BPN, Freeport, “escutas” de Belém, Face Oculta), autoridade para sujeitar os portugueses ao duche frio financeiro que gregos e irlandeses já se preparam para sofrer?
Mais: em 2009, com juros baixos, inflação reduzida e o aumento de salários da função pública, a população empregada mal sentiu a crise, a não ser psicologicamente. O aperto, para a maioria, ainda está para chegar. O regime de partidos construído em 1974-1975 já resistiu a muita coisa. Aguentará outra vez?
Publicado no Correio da Manhã
Jimmy Fallon, "Band of Brothers", ep. V
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.