Infalsificável
1. Estou muito contente. O João Gonçalves saiu do seu habitual torpor ofensivo, e colocou-se na defensiva. E defendeu a única coisa que costuma defender: o Vaticano. Óptimo. Neste mundo, o João é um homem de ataque. Está sempre a atacar esta cidade dos homens, porque, na verdade, o João é um soldado da cidade de deus. O encanto dos textos do João advém disso: ele coloca-se na posição de alguém que não é daqui; alguém que tem de passar pelo inferno que é a cidade dos homens (sobretudo quando lhe calhou em sorte esta parte da cidade dos homens que se chama Portugal). É isto que dá o desprendimento e o encanto reaccionário aos textos do João. Um encanto que vale a pena acompanhar no livro da foto.
O João está sempre ao ataque, porque nada o prende aqui na cidade dos homens. Donde só reage às críticas lançadas sobre aquele que tem a chave da cidade de deus: aquele que se senta no trono romano. Posto isto, claro que o João não gosta daquilo que escrevi sobre o Papa. Nem esperava outra coisa. É bom que o “olhómetro” católico do João reaja ao “olhómetro” liberal. São dois olhómetros necessários. (Mas, estás enganado, João - os preconceitos são tramados; eu não sou da “Espada &Cia academia”, seja lá o que isso for).
2. Caro João, não passei os olhos pela encíclica. Eu li a encíclica. Podes não concordar com o que escrevi sobre a dita, mas não insinues que não a li. Não entres nessa mania muito portuguesa: quando alguém faz uma interpretação diferente da nossa, há tendência para se dizer “leu por alto”, “não sabe o que está a dizer”.
Depois, naquilo que escrevo há muito respeito pelo Papa. Porque escrevo com alguma desilusão: esperava-se mais de alguém com a qualidade de Ratzinger; esperava-se mais conhecimento empírico da realidade à qual aplica o Evangelho. Mais: existem pontos onde estive e estarei com o Vaticano. Não tenho problemas em dizer que o Papa tem razão em alguns pontos. Mas também não tenho problemas em criticar o Papa. Sim, gozei com o Papa. Tal como gozo com Alá, Buda, e com Eanes (o teu deus pagão). A liberdade, a concreta (e não a da caridade), depende disto: podemos brincar com tudo (e, já agora, prezo que os católicos não me queimem a rua quando gozo com o Papa). Por outro lado, a ideia de que gozar com o Papa é para a esquerda, João, revela como o debate em Portugal vive preso em “capelinhas” mentais que não me interessam. Gozo com o Papa sem medo de parecer esquerdista.
3. Podes não gostar da companhia, mas, lamento, existem semelhanças entre a Igreja e a Esquerda nas críticas que fazem à globalização. As fontes são diferentes, mas as duas correntes cruzam-se no momento da crítica ao “liberalismo” e à “globalização”. Repara no que digo: esquerda e igreja não são iguais eticamente, mas partilham percepções erradas da globalização.
(não é por acaso que encontras mais pontos em comum com um velho senhor da esquerda, Medeiros Ferreira, do que com um jovem e leviano liberal. É normal, que assim seja. Ou então, Medeiros Ferreira está a fazer um trajecto semelhante ao de Vítor Cunha Rêgo, o que seria ainda mais interessante).
4. O Papa tem directo a uma leitura normativa da globalização. Óptimo. O meu ponto é outro: nalguns pontos de “análise”, o Papa está empiricamente errado. O Papa e tu, meu caro escudeiro de Ratzinger, têm direito a uma visão normativa do que quiserem. Mas existem questões de opinião, e existem questões de facto. E até o Papa – para entrar na discussão – tem de respeitar essas questões de facto. Foi para isso que alertei.
Quando falo em Louça e Boaventura, não falo da política doméstica, mas sim das análises à política/economia internacional. Em muitas partes - que já indiquei no jornal e no blog - o Papa reproduz a essência do argumento dessa esquerda: a riqueza de uns países necessita da pobreza de outros países. Isso não é assim. É empiricamente falso.
5. João, no final do teu texto, entras na cidade de deus, pois usas o argumento inquebrantável da tua fé. Aqui, confesso a minha inferioridade. Não tenho fé, logo, tenho de aceitar o teu argumento infalsificável como imbatível. São as limitações de um agnóstico leviano que apenas conhece a cidade dos homens.