Da dignidade institucional
Freeport e o excepcionalismo português
O caso Freeport tem revelado a típica fragilidade portuguesa perante os escândalos de corrupção. E esta fragilidade mui lusa tem duas faces.
Em primeiro lugar, os portugueses falam dos escândalos nacionais como se Portugal fosse o único país do mundo com corruptos. A pátria adora falar assim: "isto cá é uma vergonha; se fosse lá fora eles iam ver como era!". Este "lá fora" é uma entidade mítica, uma entidade civilizada que aparece em oposição ao incivilizado "cá dentro". Na mente portuguesa, o mundo divide-se assim em duas esferas: nós, as bestas lusitanas versus eles, os estrangeiros perfeitos. Por outras palavras, temos um excepcionalismo mui especial. O excepcionalismo americano, por exemplo, acha que o seu "cá dentro" (EUA) vai salvar o "lá fora". Para o excepcionalismo francês, o "lá fora" é um sítio obscuro à espera da luz francesa. Portugal é o absoluto contrário desta inclinação. Nós temos um excepcionalismo invertido: para o português, Portugal é a única distopia corrupta do mundo, e os restantes países são altivas Camelots.
Em segundo lugar, os portugueses têm uma capacidade ímpar para desprezar as regras institucionais que estão a montante do combate à corrupção, logo, não mudam essas regras no sentido de tornar a corrupção mais difícil. Há escândalos na Suécia, Inglaterra, Japão, EUA, França, etc. Uma sociedade sem escândalos não é uma sociedade livre. A inexistência de escândalos é uma marca das ditaduras, onde tudo é encoberto em nome do bom nome dos líderes. Mais: nas outras democracias, também existem pressões políticas sobre a justiça. Nenhuma democracia é habitada por anjos despressurizados. Portanto, a especificidade portuguesa não é a suposta predisposição da raça para a corrupção, mas sim a fraqueza institucional da III República. Nos EUA, há corruptos e pressões, e, por isso, um juiz do Supremo Tribunal não pode saltar para o poder executivo. Em Portugal, há corruptos e pressões, mas um juiz do Tribunal Constitucional (TC) pode ingressar no Governo.
Tudo isto para dizer o seguinte: nas últimas semanas, ninguém falou do caso Rui Pereira. Ninguém deu destaque ao facto de um ministro ser um ex-juiz do TC. Ora, quando observamos um país onde um juiz passa a ministro perante a passividade geral, podemos dizer que esse país acha normal a existência de pressões políticas sobre a justiça. Porque - atenção - uma pressão política sobre procuradores é brincadeirinha quando comparada com o salto de um juiz para o Governo. Os portugueses não dizem nada sobre o caso Rui Pereira, e depois acham estranho a promiscuidade entre partidos e justiça?