O pessimismo não é global (2)
Público, 28 de Outubro de 2007
Mira Kamdar (fellow na Asia Society, Nova Iorque) procurou fazer um relato em tom jornalístico das diversas faces da Índia. E o resultado não é brilhante. Mira Kamdar perde-se num registo demasiado descritivo; o livro acaba por ser um inventário das grandezas e misérias da Índia contemporânea: o sucesso tecnológico lado a lado com a pobreza, corrupção, ausência de infra-estruturas e epidemias; o sucesso económico e a ascensão estratégica da Índia; a crescente presença de indianos na sociedade americana, etc. Planet India torna-se cansativo porque o único fio condutor da multidão de factos apresentada é a confiança desmesurada que Mira Kamdar coloca no futuro da Índia. Aqui podemos ver ao vivo a predisposição mental da actual elite indiana; uma predisposição assente em dois pontos: (1) confiança absoluta no futuro da Índia enquanto líder mundial e (2) a noção de que a ordem internacional dominada pelos ocidentais entrou em colapso e que o Ocidente, em si mesmo, entrou em decadência.
Mira Kamdar, como todos os indianos, critica o excesso de peso ocidental nas várias instituições internacionais (defende a democratização dessas instituições). Mas o ponto central de Mira Kamdar é outro, a saber: existe um novo soft power a actuar no mundo, o soft power indiano. E de onde vem esse soft power? Em primeiro lugar, a Índia é uma civilização milenar com influência no sudeste asiático e médio oriente. Em segundo lugar, a cultura popular indiana tem um alcance mundial (Bollywood é mesmo um fenómeno global). Em terceiro lugar, ao desenvolver o capitalismo dentro de um sistema democrático, a Índia representa um modelo alternativo ao capitalismo autoritário da China. (...) Kamdar coloca o soft power indiano contra o soft power americano/ocidental. Ou seja, a Índia deve prosseguir um caminho entre o autoritarismo chinês e o consumismo desenfreado dos ocidentais; Nova Deli deve projectar um caminho low-cost, apresentando soluções poupadinhas, digamos assim, para os problemas mundiais (medicamentos mais baratos, consumo de energia mais modesto, por exemplo). Enfim, Mira Kamdar propõe uma versão forreta do capitalismo; uma versão que não consuma as energias da Mãe Terra. Rosa Luxemburgo dizia qualquer coisa como “socialismo ou barbárie”. Mira Kamdar actualizou a expressão para “Índia ou barbárie”. Em Planet India, o mundo só tem duas hipóteses: seguir o caminho poupadinho da Índia espiritual (que salvará o planeta) ou continuar pelo caminho do materialismo ocidental (que está a conduzir a humanidade ao quinto dos infernos). Se a Índia não conseguir impor o seu modelo ao mundo, se o modelo ocidental continuar a ser dominante, o planeta Terra implodirá, garante a autora. Por outras palavras, Al Gore meets Gandhi.
Que não restem dúvidas: a Índia enquanto Grande Poder é um dado político central no início do século XXI. O problema de Planet India é que eleva esta ascensão indiana até ao nível da teologia política. Kamdar não faz análise política. Deixa-nos apenas um acto de fé. A Índia é, de facto, muito importante no sistema internacional, mas não é a salvação teológica do planeta. Kamdar tem razão quando afirma que a ordem internacional precisa de ser reactualizada (os ocidentais têm de perder poder nas instituições internacionais), mas a autora entra na esfera da irracionalidade quando assina o atestado de óbito ao soft power ocidental e, sobretudo, quando transforma a Índia no novo centro do mundo. A Índia é importante, sim senhora, mas não é o anjo redentor do planeta.