Freeport, o Gólgota de Sócrates
1. Nesta entrevista, ficámos a saber que José Sócrates, como qualquer político sul-americano que se preze, acha que é um "Cristo" situado acima da crítica. Mas deixemos para o fim o lado crístico de Sócrates.
2. Isto não foi bem uma entrevista. Foi mais uma passadeira vermelha. A RTP parece estar sempre disponível para ser um instrumento da agenda do governo. Há uns dois meses, Augusto Santos Silva entrou numa polémica qualquer onde dizia que “gostava de malhar”; uns dias depois, teve direito a uma entrevista na RTP. Durante a polémica da licenciatura, Sócrates foi à RTP para “defender a sua honra”. Agora, com o Freeport e com a tensão crescente governo/PR, novamente uma conveniente entrevista na RTP. Tudo isto parece dar razão às pessoas que vêem na RTP um instrumento do governo.
3. Sócrates, ao longo da entrevista, comportou-se como um patrão que é entrevistado por dois empregados. Sócrates usou e abusou do seu poder como PM para ser ele a dirigir a entrevista. Às tantas, parecia que a Judite de Sousa e o José Alberto de Carvalho é que eram os entrevistados. Sócrates queixa-se muito dos jornalistas, porque, diz o nosso PM, o criticam de forma injusta. Pois eu queixo-me dos jornalistas, porque, sistematicamente, não conseguem impor-se ao PM. Sócrates disse, dezenas de vezes, “deixe-me acabar, sff”, “não me interrompa, sff”. De forma irritante, Sócrates, mais uma vez, transformou uma entrevista num comício.
4. Alberto de Carvalho começa logo por comprar – ainda na introdução – a tese falaciosa do governo: a de que a nossa crise é o resultado da crise financeira internacional. Sócrates repetiu novamente essa tese. Esta tese está errada. Nós já estamos em crise há 10 anos. Há 10 anos que divergimos da Europa. Não é de agora. Em 2004, tivemos uma recessão quando o resto do mundo – e mesmo a Europa - tinha o período de crescimento mais intenso da história. A nossa crise é estruturalmente portuguesa; é uma crise que já existia antes da crise financeira internacional. A actual conjuntura apenas veio agravar o que já existia de errado (excessivo endividamento do estado e das famílias; défice de produtividade; escassa mobilidade laboral; modelo económico assente em obras públicas, etc.).
5. Sócrates acha que há uma “obrigação moral” em fazer investimento público agora. Sócrates parece desconhecer o seguinte: é “obrigação moral” de um país não tramar o futuro das gerações futuras. Os investimentos públicos (TGV, por exemplo) podem fazer bem a algumas estatísticas no curto prazo, mas põem em causa – ainda mais – o futuro do país. Não podemos deixar que Sócrates continue a governar a pensar no próximo ano apenas. Sócrates vive num mundo virtual, que desconhece a realidade: na realidade, já toda a gente percebeu que o TGV, por exemplo, tem de ser, no mínimo, adiado.
6. Sinal do nosso atraso económico e da falência do nosso modelo económico: passou-se imenso tempo a falar de auto-estradas, como se a auto-estrada fosse a nossa salvação. As auto-estradas podem dar jeito às construtoras, mas já não dão jeito ao país. Já chega.
7. Sócrates fez humor (humor involuntário, diga-se) quando tentou desligar as últimas declarações do PR da actuação do governo. Claro que o PR estava a dar um recado ao governo.
8. É muito grave a forma como Sócrates lida com a liberdade de expressão, com a liberdade dos jornalistas. Sócrates teve uma frase que me parece muito grave, porque é uma ameaça deliberada. Foi qualquer coisa como isto: “quando alguém coloca o meu nome no caso Freeport, então, estamos perante um acto de difamação”. E depois diz que processa pessoas que o difamam. Eis alguém que se julga acima da crítica; eis alguém que se julga um “escolhido”, e que, por isso, não tolera que o seu nome seja enlameado. Pior: Sócrates acha mesmo que isto é uma “provação”, uma “cruz às costas que tem de carregar”. Ficámos a saber, portanto, que o Gólgota de Sócrates é o Freeport. Estou comovido, confesso.