Obama, Huntington ou Niebuhr?
Em resposta a esta crónica sobre Obama, recebi um texto de Guilherme Marques Pedro, doutorando de Teoria Política em Aberystwyth. Aqui fica. Em breve, tentarei responder.
Obama leitor de um teólogo cristão, Niebuhr? A esquerda europeia aguenta isso?
O artigo que Henrique Raposo publicou na última edição do Expresso sobre as semelhanças entre o pensamento de Samuel Huntington (1927-2008) e a acção política de Obama, associando-o a um certo tipo de conservadorismo no que à política externa diz respeito, tem desde logo o mérito de tentar enquadrar a política externa ainda verde de Obama num contexto teórico e académico. Importa contudo notar que grande parte daquilo que diz ser o realismo da presente administração - que opõe certeiramente ao idealismo republicano do Presidente Bush - tem pouco que ver com o trabalho de Huntington pelas razões que a seguir exponho.
Apesar de concordar com os pontos em comum que Henrique Raposo sublinha, a visão de Obama para o mundo decorre muito mais da sua leitura atenta de Reinhold Niebuhr (1892-1971), um dos teólogos fundadores to realismo cristão na década de 30. Apesar de ter gostado de ler o artigo, importa lembrar que aquilo que celebrizou Huntington não foi propriamente o seu realismo, mas sim a sua visão algo catastrófica do futuro dos conflitos internacionais e a forma como foi mediatizada. Quer o realismo clássico de Niebuhr e, com imensas nuances, o de Hans Morgenthau (1904-1980), quer o realismo estrutural de Kenneth Waltz - com quem tive o privilégio de falar pessoalmente em Setembro passado a este respeito - são pouco dados ao sensacionalismo presente nas teses de Huntington e têm aliás afinidades com o pensamento político continental europeu - uma certa teologia política, um certo existencialismo disfarçado, adaptado ao republicanismo dos pais fundadores - que não transparece nos textos de Huntington. Esse realismo cristão é muito mais sóbrio e representa, acima de tudo, uma crítica ao idealismo liberal e capitalista e à sua fé no direito e na técnica e também às utopias pseudo-científicas do Marxismo (que ficou conhecida como 'hermeneutics of suspicion'). Assim, o realismo mantém uma réstia de esperança e de crença no ser humano - aquilo que foi posteriormente designado 'hopeful scepticism'. De resto, o anti-essencialismo de Niebuhr muito inspirado por Nietzsche, representa de facto um recuo da ética para a esfera individual decorrente de uma antropologia pessimista que assume que os grupos se comportam imoralmente quando comparados com os indivíduos - porque se sujeitam a relações de poder e, enquanto estados, tendem a ser mais egoístas que os próprios indivíduos.
Assim, Niebuhr rejeita quer um certo tipo de idealismo de tendências universalizantes - de que são exemplos maiores a teoria da guerra justa ou o ideal da 'Democratic Peace' que inspirou a Sociedade das Nações - quer um tipo de cinismo que poderia conduzir os americanos à inacção, ao alheamento e ao isolamento extremo. No fundo, os realistas argumentam que a política externa não poderia cair na tentação do conformismo - a que a política doméstica se habituou e que a sua cultura de consumismo reproduz - quando pela frente se encontravam ameaças como Hitler e, mais tarde, a União Soviética. Mesmo o 'clash of civilizations' é incomparável a essas ameaças, pelo menos por agora, nos perigos concretos que apresenta. Daqui resulta uma astúcia política que Obama tem sem dúvida demonstrado e que se caracteriza por uma prudência, temperada por uma mensagem de esperança - que sinceramente julgo que não vai dar em nada de concreto, mas nunca podemos menosprezar o efeito psicológico deste líder. Esta prudência não é um 'ter cuidado com os outros' mas aplica-se sobretudo ao próprio exercício de poder americano - uma espécie de 'eu tenho de ter cuidado comigo mesmo', uma Inward Prudence que a administração Bush não demonstrou.
Quanto ao Liberalismo - que pode ter muitas definições que não vou aqui desenvolver - todo o Realismo manifesta portanto enormes reservas. Sobretudo o de Obama precisamente porque Niebuhr era, no climax das suas posturas realistas e bíblico-proféticas, na sua capacidade em alertar para a omnipresença do pecado nas relações internacionais e ainda assim lutar por maior justiça social e económica internamente, um pós-marxista - mesmo que discordando, como teólogo e pastor, do secularismo presente na esquerda radical. Encontramos nele uma advocacia da Democracia pela negativa, sem apologias do que de positivo o liberalismo oferece, apenas suportada por uma fé imbatível naquilo que o liberalismo é capaz de combater fora dele - muito na linha de Santo Agostinho: o governo como mal menor, sempre valorizado por oposição a males maiores e como segurança contra eles. Nas primeiras páginas do The Children of Light and the Children of Darkness encontramos a descrição da defesa agostiniana da Democracia Liberal, posta nos seguintes termos:
'A capacidade do Homem para a justiça torna possível a democracia; mas é a sua capacidade para a injustiça que torna a Democracia necessária'.
Ainda assim, a descrição que oferece da presente administração parece-me acertada. Simplesmente, o que Huntington tem de bom não é original. E o que tem de original não é muito bom, ou de qualquer forma, não se aproxima muito desta administração. Sobretudo há em Obama uma certa ideia de respeito pelo inimigo - de acordo com a célebre citação bíblica, frequente em Niebuhr: 'Love your Enemy' - ainda que tal atitude não afecte, segundo a boa tradição do pragmatismo americano, um convicta e firme oposição contra o mesmo. Há sobretudo um sentimento de prudência e de defesa (e não exportação) da Democracia no respeito por alguma relatividade dos valores que resulta da assunção da sua incomensurabilidade - uma ideia, de resto, muito weberiana, e presente em todas as incarnações do realismo. Assim, sem fazer da Democracia um veículo da 'righteousness' própria do neo-conservadorismo, em que a democracia se absolutiza em Cruzada, Obama pode menorizar os efeitos do clash cultural e moral que a globalização anuncia - e cuja antecipação não é da autoria de Huntington - e assim reconstituir o ideal americano de democracia, oscilando entre a consciência de experiência política contingente e destino histórico último.